A Despedida

 
Eu decidi ser alguém aos dezoito anos, em um dia quente e sufocante do verão de 2000. Chega a ser incrível a tamanha nitidez com que aquele momento mágico permanece em minha memória; quando papai se aproximou de mim com os olhos marejados e disse sem pestanejar o que gostaria de ter escutado quando adolescente: Aqui não é o seu lugar. Está na hora de ir embora. Está na hora de correr atrás dos seus sonhos e ser alguém na vida. Foi há muito tempo, mas foi um daqueles momentos que nem mesmo o tempo é capaz de apagar.

As lembranças desse pequeno átimo retornaram à minha memória porque há duas horas recebi uma ligação do meu tio Raimundo. Ele ligou do interior, e, com a voz embargada, anunciou o que mamãe o havia incumbido de dizer: seu pai morreu! Mal tive tempo de respirar quando me fez calar, e da maneira mais cruel, anunciando sem o menor preparo que uma parte de mim também acabara de morrer. A voz rouca, porém sonora, deu lugar a um silêncio imperturbável que soou por intermináveis segundos, interrompidos apenas por um leve murmúrio: os gemidos de mamãe inundando a linha e trazendo-a ao meu encontro. Logo percebi que ela não quis falar comigo. O motivo? Nada de contatos virtuais. Ela quer me ver, olhar nos meus olhos, ter-me de novo no colo, acariciar meus cabelos e dizer que tudo vai ficar bem, como fazia quando eu era criança. A ligação foi rápida, tanto quanto o anúncio da tragédia, mas durou o suficiente para que eu entendesse o recado: volte para casa, venha velar o corpo daquele que tanto te amou e fez tudo por você.

Assim que coloquei o telefone no gancho, senti algumas lágrimas rolando por conta própria, donas de si. Uma dor pungente se instalou em meu peito, fazendo o coração disparar como um metrônomo em presto; dor que vinha acompanhada de uma espécie de antídoto: ele se foi, mas eu fiz algo por ele.

Antes de arrumar as malas, resolvi passear pelo parque do Ibirapuera na expectativa de ver o tempo retornar à sua languidez cotidiana. A escolha do lugar se deu pelo simples fato de ser uma bela tarde de sábado, e por passar em minha mente, mesmo que de relance, tudo aquilo que me trouxe até aqui, e todos os desafios que tive que enfrentar para vencer na vida. O show da fonte luminosa! Sim, ele também foi um dos responsáveis pela decisão. Um espetáculo que quando vi pela primeira vez, prometi a mim mesmo que também o veriam papai e mamãe antes que morressem (infelizmente papai não verá mais, resta cumprir a promessa com relação à mamãe, antes que seja tarde demais). Na ocasião, gastei todo um cartão telefônico de quinze reais tentando explicar ao velho o que havia visto e ouvido naquele começo de noite, um entardecer frio e melancólico de julho. Na sua simplicidade, não conseguiu entender como a imagem de uma pessoa poderia dançar livremente no ar por entre milhares de gotículas de água dispersas sob o comand
o de um computador. Um computador. É certo que eles nunca souberam do que se trata. Esperei meia hora, apático, impassível. Os pensamentos indo e vindo por minha mente, entrando e saindo ao gosto do vento. Quando, de repente, as luzes começaram a brilhar, a música de Tchaikovsky a reverberar e os jatos de água a ganharem altura e dançarem, como bailarinas nas pontas dos pés, áureas. Ao ouvido, a voz do meu velho sussurrando baixinho: Aqui não é o seu lugar. Você precisa ir embora. Vá, busque seus sonhos, passe em um concurso, vença na vida. Mais uma vez, as lágrimas foram inevitáveis. Confesso que me permiti chorar, vencendo o preconceito arraigado dentro de mim pela cultura, pelas gerações, pelo próprio velho que agora terei que enterrar. Como sentirei saudade daquele homem tão simples, mas ao mesmo tempo, tão admirável.

Já em casa, arrumei tudo o que era necessário para a missão: duas mudas de roupa, um par de sapatos, algumas lembranças da cidade grande (compradas às pressas no shopping após o show das fontes) e alguns documentos necessários. As passagens compradas pela internet pesaram no bolso, de fato, mas esse é um tipo de gasto do qual nem se discute, e que graças a Deus pude fazer devido às poucas economias guardadas na mirrada poupança. Foi assim que tentei dormir, já ansioso, e angustiado, pelo voo no final da manhã rumo à cidadezinha perdida no mapa (na realidade, ainda terei que enfrentar mais de 150 km de estrada para chegar lá), quase inexplorada, e pela certeza de que veria meu pai pela última vez, dormindo o mais que merecido sono dos justos.

Viagem cansativa, e não poderia ser diferente. Ao chegar à pequena casa, as lágrimas voltaram, juntamente com as lembranças, e desta vez por encarar o rosto sofrido e a expressão mais do que abatida de mamãe. O abraço duradouro trouxe consigo uma espécie de conforto, além de uma sensação de “lar doce lar” tão gostosa, mas ao mesmo tempo amarga devido às circunstâncias.

─ Seu pai se foi, meu filho.

Apenas um fio de voz. E tão embargada, uma faca afiada cortando o coração.

─ Eu sei mamãe, eu sei.

Notei que ela não precisava de palavras, mas apenas da minha presença preenchendo o espaço agora vazio. Ficamos grudados um bom tempo, e consolamos um ao outro. E foi esse o consolo que precisei tantas vezes, em cada um dos fracassos que acumulei ao longo de tantas provas. Não foi fácil, nada fácil. A distância dos amados, a baixa autoestima, a falta de disciplina, as dificuldades do dia-a-dia, as leituras intermináveis, os assuntos complexos e tão abrangentes. Um novo mundo para desbravar, e eu sozinho lutando contra tudo isso.

A casa continua a mesma, tudo nos mesmos lugares. Engraçado como as coisas não mudam no interior. A sensação que dá, é que saí para resolver alguma coisa e voltei no dia seguinte. E olha que se passaram mais de dez anos. O mesmo sofá, as mesmas camas e seus respectivos colchões surrados, a mesma foto de papai e mamãe pendurada na parede da sala. O fato torna-se engraçado, principalmente, porque para mim tantas coisas mudaram. Da infância sofrida, da alfabetização precária, da falta quase absoluta de recursos pouca coisa restou. Muitas lembranças, de fato, mas apenas isso. Lembranças que permaneceram esquecidas, quase suplantadas pelas horas de estudo, e de todas as informações adquiridas depois da decisão de ir para a cidade grande e prestar concursos. Assim como a casa, todos continuam exatamente iguais. Tio Raimundo, tia Benedita, os primos, as primas, todos como se não tivessem outra muda de roupas. A cidade, por sua vez, também não mudou nada. As ruas estreitas, forradas pelos paralelepípedos, as poucas casas de cimento e telhas (a maioria é de pau a pique), os pouquíssimos carros, e todos bem velhinhos. Nada mudou, é uma cidade que vai permanecer inalterada com o tempo, alheia à globalização e seus avanços.

O momento mais difícil, é claro, teria que ser revê-lo, e desta vez, apático, imóvel, sem vida. Dizem por aí que nos instantes que antecedem a morte, um filme meteórico é passado por nossa mente, mas o interessante é que esse filme passou por meus olhos ao ver papai estático, dentro do caixão ainda aberto. Todos os momentos vividos com ele, as dificuldades da lavoura, a educação rígida e machista, as surras doloridas e os conselhos ditados pela experiência; tudo aquilo que me tornou o que sou hoje, e tudo isso relembrado devido à visão de um corpo tão familiar, agora inerte. A mão gelada me remeteu ao passado, um tempo que jamais retornará, e que muito provavelmente, me lamentarei daqui por diante por não tê-lo aproveitado como deveria. É a vida, dizem desde sempre que só se dá valor àquilo que se perde.  

Depois de uma breve mensagem religiosa, de alguns hinos cantados, me colocaram sobre os ombros a responsabilidade de falar; muito provavelmente por me considerarem uma pessoa letrada, um “Doutor”, como muitos me chamaram ao me verem retornar.

─ Diga alguma coisa, meu filho ─ O pedido de mamãe soou pela sala, interrompendo o silêncio cortante, e tornou-se irrecusável. Eu já sabia que teria que falar, mas mesmo tendo pensado ao longo de toda a viagem, me faltaram palavras para esse momento; palavras para descrever uma pessoa tão especial. Nenhum doutorado do mundo te prepara para isso. Nesses momentos, nenhuma técnica funciona, nenhum método de relaxamento, e só o coração consegue falar mais alto. E foi ele quem falou, sem rédeas, sem iscript:

─ O que posso dizer desse homem? Foi ele que me ensinou a sonhar. Ele que me fez olhar além do horizonte, e ousar ultrapassá-lo. Foi por ele que saí daqui com uma mão na frente e outra atrás, e encarei o mundo como uma criança diante dos seus primeiros passos. Muito obrigado meu pai. E me perdoe por não ter feito tudo o que poderia, mesmo tendo lutado com todas as minhas forças. Vá com Deus meu amado paizinho, e descanse em paz.

Mais alguns minutos, mais algumas palavras e lamentos, e tudo chega ao fim. É hora de despedir-se. Enquanto o caixão desce, algumas pessoas jogam flores, enquanto outras, apenas observam ─ levadas à reflexão pela única certeza que todos nós temos. Para o meu querido pai, eu deixo muito mais do que isso ─ além das lágrimas e da dor indescritível, deixo a prova de que cheguei lá, de que tudo valeu muito a pena. Sobre o caixão, deixo a cópia do Diário Oficial da União com o nosso nome publicado, a prova cabal de que nós dois vencemos, e que mesmo em vista de tantos desafios, o sonho de meu pai, eu realizei.
Alisson Felipe é servidor público, concurseiro e autor do primeiro romance concurseiro da literatura brasileira entitulado "APROVAÇÃO".

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